sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Na Cidade dos Sabichões

NA CIDADE DOS SABICHÕES

Tendo fugido aos soldados, Pedro chegou a uma estranha cidade. As pessoas andavam pelas ruas sem pressa e sem ruído, concentradas em pensamentos profundos. Os poucos meninos que encontrava não estavam correndo ou jogando, mas lendo pesados livros ou rabiscando pelas paredes problemas complicados.
Pedro, que já ouvira falar de um lugar assim, não teve dificuldade para perceber que chegara à Cidade dos Sabichões.
Sentia fome, pois a caminhada fora longa. Pensou em trocar por um jantar uma daquelas moedas reluzentes recebidas do general Olhofino. Entrou num restaurante e pediu:
- Sopa, bife, pão e queijo.
O empregado que o atendera não se moveu. Depois de tomar nota das coisas pedidas, perguntou:
- Qual a distância entre a terra e o céu?
Pedro fez uma careta feroz e respondeu:
- Quê? Pois então trago um apetite de três dias e você em vez de tratar logo da comida, fica a fazer perguntas idiotas?
- Desculpe, explicou o rapaz, mas a todos os estrangeiros devemos fazer essa pergunta antes de trazer a comida!
- Ah! Se for pelo receio de que não tenha dinheiro, está enganado. Preste atenção e arregale os olhos!
Dizendo isso, espalhou sobre a mesa uma porção de moedas.
Mas o empregado do restaurante, com um gesto de pouco caso, disse:
- Arregalar os olhos por isso? Ora essa, bem se vê que o senhor não sabe que nesta cidade o ouro não tem valor algum!
Pedro é que arregalou dois olhos deste tamanho ao ouvir uma coisa dessas. O ouro não valia nada?... Nem um bife, uma sopa e um pão? Onde se viu coisa igual, meu Deus do céu?
- Pois é assim mesmo, repetiu o outro. Aqui, na Cidade dos Sabichões, o ouro não tem valor. Se o senhor quiser comer, passear e dormir, terá que pagar com amostras de sua inteligência, resolvendo problemas. Sabendo a solução, leva o que deseja. Não sabendo, sinto muito mas o jantar terá que ficar para outro dia!
- Agora, sim, é que estou bem arranjado! Resmungou Pedro, já na rua, muito aborrecido. Tenho fome, necessito de uma roupa nova, de uma cama bem fofa e esta curiosa gente não quer saber de dinheiro! Pagar o jantar com uma resposta... Quem tem fome não quer saber da distância entre a terra e o céu! Entre a terra e o céu... Entre a terra e o céu? Ora essa, mas se é tão fácil! Grande tolo fui...
E, com a lembrança que de repente lhe veio, saiu a correr de volta ao restaurante. Sentou-se no mesmo lugar de antes e pediu as mesmas coisas.
O rapaz, que o atendera novamente, perguntou:
- O senhor já sabe qual a distância entre a terra e o céu?
- Claro que sei! Respondeu Pedro com entusiasmo. Fui medir essa distância agorinha mesmo, ali fora. Você não viu?
Num minuto todas as pessoas presentes estavam ao seu redor.
- Qual é? Qual a distância? Perguntavam, alvoroçados. Nenhum estrangeiro conseguiu até agora apresentar a solução certa!
- Para mim, explicou Pedro, a distância entre a terra e o céu é igual a uma virada de olhos!
- Uma virada de olhos? A distância é igual a uma virada de olhos?
A discussão foi das maiores. Uns achavam que a resposta estava certa e outros diziam que ela não passava de um grande absurdo. Por fim, três dos mais velhos sabichões saíram para a calçada e moveram os olhos da terra para o céu e do céu para a terra. Quando voltaram, disseram ao empregado:
- Pode servir o jantar a esse senhor. A distância é mesmo a que ele disse, se medida com os olhos. Pode-se medir uma distância com metros e quilômetros, mas também com os olhos. É uma novidade interessante, essa! Amanhã mesmo vou pregar essa peça ao nosso Ministro das Medidas!
Saindo do restaurante, Pedro foi à loja do mais afamado alfaiate da cidade. Com modos de fidalgo muito exigente, escolheu as melhores roupas e depois perguntou:
- Qual o preço de tudo isso? Pode pedir e não faça cerimônia!
O alfaiate, vendo a multidão curiosamente postada diante da porta para ouvir o que Pedro tinha a dizer, imaginou fosse ele o maior sabichão de todos os sabichões. Correu para os fundos da loja e, ao voltar, momentos depois, trazia uma laranja na mão.
- O preço é este! Anunciou. Tenha a bondade de dizer-me em trinta segundos, sem tocar e nem se aproximar desta fruta: qual é exatamente o meio dela.
Ouviu-se um murmúrio de assombro, que vinha da assistência. Pois haveria alguém capaz de semelhante façanha?
Pedro gastou apenas vinte segundos para invocar toda a experiência obtida em suas longas viagens. Depois respondeu:
- Bem barato é o seu preço, meu amigo! Aqui está o pagamento: como a laranja é perfeitamente redonda, qualquer ponto dela é exatamente o seu meio!
A gente acotovelada diante da porta da loja, aplaudiu com entusiasmo. O alfaiate declarou-se satisfeito e Pedro saiu vestindo as roupas cobiçadas.
- Agora, um hotel, pensou.
E dirigiu-se para o mais caro da cidade, denominado o “Hotel da Sabedoria Perfeita”. Chegou, cumprimentou o gerente e pediu o aposento reservado para o rei.
- Desculpe, explicou o gerente, mas costumamos cobrar adiantado por esse aposento! E o preço é bem alto! O senhor está disposto a pagar?
- Pois claro, bazofiou Pedro. Qual o preço?
O gerente tomou uma expressão de quem se julga o homem mais ladino do mundo e, em voz bem alta para que todos os presentes ouvissem, disse:
- Faça-me o favor de dizer qual é o lugar onde todos vão com a roupa que não vestiram, limpos sem se terem lavado, rodeados de flores mas não perfumados e ainda, sem haverem sido convidados?
Mal terminara de propor a questão e Pedro já respondia:
- O lugar é o cemitério!
O gerente do hotel entregou-lhe uma chave, dizendo:
- Ótimo, o senhor pagou por um dia, o dia de ontem.
- Como assim? Protestou Pedro, se acabo de chegar, não posso ter feito despesas no dia de ontem!
Mas o homenzinho explicou:
- Todos causam despesas mesmo antes de chegar, pois muitos preparativos devem ser feitos para recebê-los.
Era verdade e Pedro não pôde deixar de concordar.
- Se é assim, faça o favor de cobrar o preço de hoje. E fique sabendo que, amanhã, logo cedo, vou-me embora daqui.
- Muito bem, vamos então ao preço, que é o seguinte: quanta água cabe no lago que existe diante do hotel?
Pedro deixou escapar uma gargalhada e respondeu:
- Cabe tanta água no lago quanto café cabia no canecão de meu avô.
- Ah! Isso não, não vale, como é que vou saber o tamanho do tal canecão?
- Pois é fácil! Mande fazer um caneco onde caiba toda a água do lago e ele será do tamanho do caneco em que meu avô tomava café!
Foi a vez do gerente não poder protestar e Pedro acomodou-se, regaladamente.
Mas, pela madrugada, foi despertado pelo ruído de soldados que marchavam, ao toque de clarins e tambores. Era o rei que chegava, inesperadamente.
O soberano, cansado da viagem, quis logo ir para a cama e ficou furioso quando ali descobriu, muito gostosamente refestelado, o nosso Malasartes.
- É um desaforo dormir na cama do rei e você vai pagar por esse crime! Soldados! Chamem o carrasco para cortar o pescoço deste atrevido!
Mas antes que o carrasco conseguisse apanhar Pedro, chegou o governador da cidade para cumprimentar o monarca. Informado do sucedido, contou ao rei que Pedro era um grande sábio estrangeiro, que muito honrava e maravilhava a Cidade dos Sabichões com sua visita e suas brilhantes respostas.
O rei, que apreciava acima de tudo as belas respostas para problemas difíceis, propôs, então, a Malasartes:
- Se for como dizem, você estará livre e perdoado. Mas, para cobrir a ofensa feita ao rei, é preciso pagar preço digno de um rei. Ora, se o rei está logo abaixo de Deus, vamos saber, qual é o preço do rei?
Enquanto arrumava suas coisas para seguir viagem, Pedro respondeu:
- O rei vale vinte e nove dinheiros.
- Quê? Como é isso? Gritaram os fidalgos e os soldados. Está louco? Puxem logo o seu pescoço! Então o rei só vale vinte e nove dinheiros?
Calmamente, pondo a trouxa às costas, Pedro explicou:
- Se o rei está logo abaixo de Deus vale vinte e nove dinheiros, porque na Terra Cristo foi vendido por trinta.
O rei soube apreciar a resposta, que mostrava grande espírito, e, porque gostava de ter homens inteligentes a seu lado, convidou Malasartes para o alto cargo de Ministro das Respostas Corretas. Mas Pedro recusou a honra, esclarecendo que estava ansioso por chegar à sua casa, onde o esperava sua mãezinha, depois de longos anos de separação.
Então, o soberano ordenou que uma guarda de honra escoltasse o ilustre viajante até a fronteira do seu reino.

Pedro Malasartes dormiu numa colméia de abelhas

Certa vez, Pedro foi com a mãe a uma festa de igreja, na localidade vizinha de onde morava. Ali, tanta cerveja bebeu que já ao meio-dia lhe andava a cabeça em polvorosa de atordoado que estava. Nem foi só o que fez. Como estava cansado, procurou um recanto com boa sombrinha para roncar uma soneca. Encontrou uma horta silenciosa, onde, aqui e ali, se destacavam vários cortiços de abelhas, alguns deles já vazios. Foi um destes que escolheu para nele repousar. E, de um sono só, dormiu do meio-dia à meia-noite. A senhora Micaela, mãe de Pedro, que procurou por toda a parte seu dileto filho, sem achá-lo, lá pela metade da festa supôs, afinal, que ele já devia estar há muito tempo em casa, quietinho como costumava viver nos últimos tempos.
Como sabemos, porém, longe disso, estava ele mas é continuando a curtir a cerveja que bebera, dormindo dentro da colméia vazia, como um pinto dentro do ovo.
Ora, ali pela meia-noite, apareceram dois ladrões na horta abandonada, com a intenção de roubar uma colméia e vender o mel.
- Levamos a colméia mais pesada, disse um deles. Quanto mais pesada for, mais mel terá.
- De acordo, respondeu o outro.
Em seguida começaram a soerguer os cortiços um por um. O de maior peso foi naturalmente aquele em que dormia o nosso Pedro. Por isso, escolheram-no, e, pondo o pesado cortiço sobre os ombros, carregaram-no da horta para a rua e lá se foram, gemendo e suando sob o peso, rumo de sua aldeia. Pedro acordou, como é natural, e ficou bastante aborrecido com o distúrbio e com o fato de ver-se transportado, na calada da noite, para direção que percebia não ser a sua cidade.
E vai então, depois de algum tempo de caminho, saiu com uma das suas. Pôs cautelosamente a mão para fora da colméia e pespegou um forte puxão nos cabelos do ladrão que ia à frente.
- Ai! Gritou o homem. Você está louco? Disse isso ao outro ladrão, supondo-o, naturalmente, o culpado. E pôs-se a maldizer o companheiro, acusando-o de lhe haver puxado o cabelo.
O ladrão que ia atrás, sem saber do que se tratava, respondeu:
- Acho que você é que perdeu o juízo! Estou me esforçando para levar esta colméia como um carregador de piano e lá vem você com essa de achar que eu teria vontade e tempo para lhe puxar os cabelos! Deixe-se de bobagem!
Pedro Malasartes divertiu-se muito com isso. Depois de algum tempo, resolveu dar outro puxão, não nos cabelos do ladrão da frente, mas no de trás. E deu de fato um puxão tão forte que ficou com um punhado de cabelos na mão.
- Isso agora é demais! Berrou o ladrão maltratado. Primeiro você sonhou que lhe puxei os cabelos e agora quase me arranca o couro cabeludo! Que atrevimento!
- Não diga asneiras, rosnou o outro. Está tão escuro que mal posso ver a estrada, estou segurando a colméia com as duas mãos e ainda você acha que eu poderia esticar o braço para trás e arrancar o couro de seu bestunto! Você está mas é sonhando com assombração!
E assim foram discutindo e dizendo mal um do outro. Era tão engraçado que Pedro precisava fazer incrível esforço sobre si mesmo para não explodir numa gargalhada. Doíam-lhe até os músculos da barriga e fungava baixinho.
Como não era possível rir, Pedro pensou em coisas bem tristes para conter-se. E em vez de rir, o que fez foi dar novo puxão nos cabelos do ladrão da frente, e com tanta violência que a cabeça do coitado bateu como um martelo contra a colméia, quase rachando-a e quase rachando-se.
Enfurecido com a dor, o homem deixou cair a colméia e agrediu, de punhos cerrados, o inocente companheiro. Então este também atirou a colméia ao chão e jogou-se por sua vez contra o primeiro. E rolaram ambos na terra, debatendo-se, arranhando-se, até se perderem, cegos de raiva, na escuridão.
E Pedro Malasartes? Ora! Pedro Malasartes continuou calmamente dentro de sua colméia, contendo o riso, e depois recaiu no sono e dormiu até o despontar do sol.
Só então é que se levantou para prosseguir seu caminho. E note-se que não voltou para a casa da mãe. Entrou a serviço de um Cavaleiro Andante, como cavalariço, muito embora não soubesse cavalgar. Não demorou, por isso, que o tal Cavaleiro o expulsasse do seu castelo, como quem atira fora uma coisa inútil.

Pedro Malasartes foi batizado três vezes

É triste, mas é verdade. O pobre menino foi batizado três vezes! Quem sabe lá se não foi por isso que ele se tornou mais tarde um sujeito tão levado da breca?
Seja como for, a verdade é que o pequeno Pedro, embora três vezes batizado, nasceu uma vez só como toda gente.
Como a localidade onde ele nasceu era tão pequena que não possuía igreja, foi preciso batizar o menino em numa cidade vizinha, que tinha igreja e o pastor.
O pastor realizou uma cerimônia de batismo muito bonita. Verdade é que a mãe de Pedro ficou na cama, pois não se sentia bem. Mas a verdade é também que as outras senhoras que tinham ido juntas à igreja acharam tudo estupendo, embora o pequeno Pedro berrasse a não poder mais, como um cabrito. Foi esse o primeiro batismo de Pedro Malasartes.
Depois da cerimônia, todos se dirigiram ao botequim. Primeiro, por terem sido convidados para isso pelo pai de Pedro, e, em segundo lugar, por sentirem sede, como sempre acontece nessas ocasiões.
Havia bebida à vontade. Muitos puseram-se a fazer discursos. E a parteira, que carregara o bebê, bem embrulhado, e que também o segurara sobre a pia batismal, era quem sentia mais sede e quem mais bebia. Ora, quando partiram à tardinha para o lugarejo onde moravam, estavam todos um tanto atordoados. A parteira também, naturalmente. E quando tiveram de atravessar uma pontezinha sobre o riacho, ela sentiu uma tontura e caiu – vejam só! – caiu da ponte para dentro do riacho e levou consigo o pequeno Pedro, bem embrulhadinho como estava. Foi esse o segundo batismo do fedelho.
Nada aconteceu de grave a qualquer dos dois. Ficaram apenas muito sujos, pois, sendo pleno verão as águas do riacho estavam baixas e escuras de lodo.
O pequeno Pedro pôs-se a gritar como se estivesse atravessado por um espeto. Ficou tão sujo que pouco faltou para perder o ar. Quando chegaram à sua cidade natal, meteram-no logo na banheira e despejaram para cima dele tanta água que voltou a ter aspecto decente. Esse foi, por assim dizer, seu terceiro batismo.
O pastor, ao saber da história, no dia seguinte, sacudiu a cabeça com seus cabelos brancos, e disse: - Contanto que o rapaz se saia bem disso tudo... Nenhuma criança agüenta ser batizada três vezes! O que é fora do normal é exagero! Esta afirmação do pastor mostrou, mais tarde, que ele, realmente, estava com a razão.

Boas Vindas

Obrigado por sua visita.
Em breve as novidades